quinta-feira, 30 de junho de 2011

Angélico. Fiquei estupefacta com certas coisas que li por esse mundo de net que temos. A verdade é que todos cometemos erros, todos nós já passámos a rua fora da passadeira, todos nós já falámos ao telemóvel enquanto conduzíamos, todos nós já esquecemos o cinto. A fatalidade vive ao nosso lado e é parte condicionante de estarmos vivos. É claro que não são atitudes correctas, é claro que têm as suas consequências, é claro que a campanha tem de ser sempre no sentido de não esquecermos todas as atitudes de segurança e haver sempre um sopro ao nosso ouvido, um grilo falante a guiar as nossas condutas. Mas ao que parece ele até levava cinto... passa-se à acusação de que ia com extrema velocidade... Ninguém sabe ao certo o que aconteceu e isso é algo que está a ser investigado por quem de direito e ponto. Acusá-lo de se achar imortal, irresponsável e inconsciente quando não sabemos se o foi, baseando-nos em notícias, ou especulações, muitas vezes precipitadas, culpá-lo numa altura de tanta dor para todos os familiares, amigos e fãs, parece-me excessivo. Aqui há apenas a ressalvar uma, infelizmente entre muitas outras, morte de um jovem num acidente de viação. E isso envolve-me de uma pena, compaixão e tristeza imensas por ele e pelos dele, porque já senti isso na minha família, sei a dor que transporta esta perda, sei o que vai mudar, para sempre, na vida de uns pais que de forma tão abrupta perderam o seu projecto de vida, a continuação de si próprios. É contra natura. Sem sabermos os contornos, só deve aumentar o sopro ao nosso ouvido, sem julgamentos.

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

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