quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Mais um dia no Hospital de Dia de Oncologia Pediátrica...

A doce S chama-me com o seu sotaque açoriano para me dizer "não tenho tumor!!!" enquanto ri, salta e arranca o peluche de abelha que adorna o meu estetoscópio. A ressonância dela mantém-se livre do cruel invasor contra o qual lutamos juntos (nós equipa, e eles muito mais equipa que nós, uma família de 5, deslocados da sua amada ilha para se baterem nesta guerra).
A valente AR sofre, cheia de uma dor que lhe quebra os ossos e a deixa deitada imóvel. Chora. Tem perguntas que diz que não lhe queremos responder.. mas muitas não sabemos mesmo como. Chegámos quase ao fim da linha e procuramos agora mais uma alternativa, aqui e em todo o Mundo, para parar o galope do Ewing. Mas quando lhe falo de quem mais idolatra, a cantora Beyoncé, o olho aviva, o lábio arrebita e conta-me deliciada que aparece neste vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=jsfeW_cvvyo)... que realizou o seu sonho (a história da Make a Wish e os seus sonhos realizados fica para um outro post...). Tanta vida e tantos sonhos existiriam(ão?) adiante...
O R não quer ser visto por mim. Diz que não sou a médica dele. Sorrio, tento conquistá-lo, mas nada feito. A sua médica aparece e ele corre, salta-lhe para o pescoço e enche-a de beijos. Não poderia vir eu, uma quase desconhecida, quebrar uma relação assim. A mãe diz que vai ficar comigo para médica dela, mas nem assim o R me acha piada.
Enquanto passo para ver um e outro menino sinto os olhos de uma mãe pregados em mim, uns olhos de ânsia, da maior avidez esfomeada de boas notícias. Depois de muitos telefonemas, finalmente conseguimos assegurar que sim, o cruel invasor mantém-se enjaulado nos mesmos locais do cérebro da sua filha, sem progredir, sem desaparecer, mas lá, encarcerado. Finalmente a mãe sorri, com lágrimas a penderem-lhe dos olhos agora agradecidos.
Ligamos à mãe do P... as notícias são más. Uma recaída em pleno tratamento. Amanhã terá de ser internado. A mãe não aguenta mais, diz-nos. E nós também sentimos algo a quebrar em nós. Também construímos esperanças que são quebradas...
É verdadeiramente duro trabalhar nesta área. É cru, um banho de realidade áspera, dia após dia. Mas tem-se a noção do que é dar desde o âmago. Todos os profissionais ali vão até ao fim do Mundo por cada doente. Muitas vezes no limite das suas forças. E os doentes vivem ali, vão lá várias vezes por semana, têm a educadora, os computadores, os brinquedos, a nós... A maioria não pode ir à escola e por isso estão ali os amigos que conhecem. As mães partilham entre si dores e dificuldades, entreajudam-se.
As crianças trazem-nos (quando as forças e o ânimo lhes permitem) sorrisos. Sorrisos que nos enchem a alma e que devolvemos sempre. E trazem-nos força para lutarmos sempre, juntos, mesmo quando a batalha parece perdida à partida. Por eles, pela vida que ainda têm por viver, por projetos que os pais criaram para eles, porque não devia ser permitida a dor e nós não a aceitamos nunca, porque somos formatados para não desistir.

1 comentário:

  1. Não sei como consegues. Eu estaria sempre a chorar pelos cantos. Graças a Deus que há pessoas como tu. Beijinhos

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