quarta-feira, 9 de março de 2011

Olhar

E há um dia em que o médico tem tempo de ir ao médico ser doente. E também gosta que lhe expliquem como se não soubesse e que dêem atenção ao seu problema. Para nós, hipocondríacos, é importante ter atenção a um problema que não inventámos, mas que nos atribuíram. Porque já é chato não ter atenção àqueles que nós criamos. Preferia que me dissessem que está tudo bem no fundinho do meu olho, por onde entram todas as imagens deste mundo. Não está, mas vou fazer tudo para prevenir que fique pior do que já está aos 26 aninhos. Vou ser uma boa doentinha e cumprir a prevenção. Apesar de hipocondríaca, tendo a ser péssima doente (meninos tapem as orelhas), falhar com tratamentos, parar porque me esqueço, enfim... Mas este é o sentido primordial, este é o sentido que me dá acesso a toda a cor, a toda a estética, a toda a arte, a ti, às paisagens, às coisas fúteis, às coisas belas, às coisas feias, ao Mundo inteiro que existe fora do meu infinito particular... E eu vou protegê-lo o melhor que puder.

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro, in Fernando Pessoa, "O guardador de rebanhos"

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